I. A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Para a Igreja, ensinar e difundir a doutrina social pertence à sua missão evangelizadora e faz parte essencial da mensagem cristã, porque essa doutrina propõe as suas consequências directas na vida da sociedade e enquadra o trabalho diário e as lutas pela justiça no testemunho de Cristo Salvador. Ela constitui, além disso, uma fonte de unidade e de paz, em face aos conflitos que inevitavelmente se levantam no sector económico social. Torna-se possível desse modo viver as novas situações sem envilecer a dignidade transcendente da pessoa humana, nem em si próprio nem nos adversários, e encaminhá-las para uma recta solução. (Centesimus Annus, n. 5)
É por isso que a Igreja tem uma palavra a dizer, hoje como há vinte anos e também no futuro, a respeito da natureza, das condições, das exigências e das finalidades do desenvolvimento autêntico e, de igual modo, a respeito dos obstáculos que o entravam. Ao fazê-lo, a Igreja está a cumprir a missão de evangelizar, porque dá a sua primeira contribuição para a solução do urgente problema do desenvolvimento, quando proclama a verdade acerca de Cristo, de si mesma e do homem aplicando-a a uma situação concreta. Como instrumento para alcançar este objectivo, a Igreja utiliza a sua doutrina social. Na difícil conjuntura presente, tanto para favorecer a correcta formulação dos problemas que se apresentam, como para a sua melhor solução, poderá ser de grande ajuda um conhecimento mais exacto e uma difusão mais ampla do “conjunto dos princípios de reflexão, dos critérios de julgamento e das directrizes de acção propostos pelo seu ensinamento (Libertatis Conscientia, n. 72; Octogesima Adveniens, n. 4). Notar-se-á assim, imediatamente, que as questões que têm de ser enfrentadas são, antes de mais nada, morais (...). (Sollicitudo Rei Socialis, n. 41)
Na vida do homem, a imagem de Deus volta a resplandecer e manifesta-se em toda a sua plenitude com a vinda do Filho de Deus em carne humana: “Ele é a imagem do Deus invisível”(Cl 1, 15), “o resplendor da sua glória e a imagem da sua substância”(Hb 1, 3). Ele é a imagem perfeita do Pai. (Evangelium Vitae, n. 36)
A dignidade da pessoa aparece em todo o seu fulgor, quando se consideram a sua origem e o seu destino: criado por Deus à Sua imagem e semelhança e remido pelo sangue preciosíssimo de Cristo, o homem é chamado a tornar-se “filho no Filho” e templo vivo do Espírito, e tem por destino a vida eterna da comunhão beatífica com Deus. Por isso, toda a violação da dignidade pessoal do ser humano clama por vingança junto de Deus e torna-se ofensa ao Criador do homem. (Christifideles Laici, n. 37)
E se contemplarmos a dignidade da pessoa humana à luz das verdades reveladas, não poderemos deixar de tê-la em estima incomparavelmente maior. Trata-se, com efeito, de pessoas remidas no Sangue de Cristo, as quais com a graça se tornaram filhas e amigas de Deus, herdeiras da glória eterna. (Pacem in Terris, n. 10)
Apoiada nesta fé, a Igreja pode subtrair a dignidade da natureza humana a todas as mudanças de opiniões que, por exemplo, ou deprimem demasiadamente ou exaltam sem medidas o corpo humano. A dignidade pessoal e a liberdade do homem não podem ser adequadamente asseguradas por nenhuma lei humana, como são pelo Evangelho de Cristo confiado à Igreja. Com efeito, este Evangelho anuncia e proclama a liberdade dos filhos de Deus, rejeita toda servidão derivada em última análise do pecado, respeita escrúpulo somente a dignidade da consciência e a sua decisão livre, adverte sem cansar que todos os talentos humanos devem ser reduplicados para o serviço de Deus e o bem dos homens e, finalmente, recomenda todos à caridade de todos. Isto corresponde à lei fundamental da economia cristã. Ainda que o mesmo Deus Criador seja igualmente Senhor, tanto da história humana como também da história da salvação, contudo, esta própria ordem divina, longe de suprimir a autonomia justa da criatura e principalmente do homem, antes a restabelece e confirma na sua dignidade.
A Igreja, portanto, por força do Evangelho que lhe foi confiado, proclama os direitos dos homens e admite e aprecia muito o dinamismo do tempo de hoje, que promovestes direitos por toda parte. Mas este movimento deve ser animado pelo espírito do Evangelho e protegido contra todas aparências da falsa autonomia. Pois somos expostos à tentação de pensar que os nossos direitos pessoais só estão plenamente garantidos quando nos desligamos de todas as normas da Lei divina. Por este caminho porém, longe de ser salva, a dignidade da pessoa humana perece. (Gaudium et Spes, n. 41)
O que está em jogo é a dignidade da pessoa humana, cuja defesa e promoção nos foram confiadas pelo Criador, tarefa a que estão rigorosa e responsavelmente obrigados os homens e as mulheres em todas as conjunturas da história. (Sollicitudo Rei Socialis, n. 47)
A dignidade da pessoa humana é um valor transcendente, como tal sempre reconhecido por todos aqueles que se entregaram sinceramente à busca da verdade. Na realidade, toda a história da humanidade deve ser interpretada à luz desta certeza. Cada pessoa, criada à imagem e semelhança de Deus (cf. Gn 1, 26-28) e por conseguinte orientada radicalmente para o seu Criador, está em relação constante com quantos se encontram revestidos da mesma dignidade. Assim, a promoção do bem do indivíduo conjuga-se com o serviço ao bem comum, quando os direitos e os deveres se correspondem e reforçam mutuamente. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1999, n. 2)
“Onde está o espírito do Senhor, aí há liberdade”(2 Cor 3, 17). Esta revelação da liberdade e, por conseguinte, da verdadeira dignidade do homem, adquire uma particular eloquência para os cristãos e para a Igreja em situações de perseguição quer em tempos passados, quer actualmente: porque as testemunhas da Verdade divina, neste caso, tornam-se uma comprovação viva da acção do Espírito da verdade, presente no coração e na consciência dos fiéis; e, não poucas vezes, selam com o próprio martírio a suprema glorificação da dignidade humana. (Dominum et Vivificantem, n. 60)
II. LIBERDADE E VERDADE
A pergunta moral, à qual Cristo responde, não pode prescindir da questão da liberdade, pelo contrário, coloca-a no centro dela, porque não há moral sem liberdade: “Só na liberdade é que o homem se pode converter ao bem”(GS, n. 17). Mas qual liberdade? Perante os nossos contemporâneos que “apreciam grandemente” liberdade e que a “procuram com ardor”, mas que “muitas vezes a fomentam de um modo condenável, como se ela consistisse na licença de fazer seja o que for, mesmo o mal, contanto que agrade”, o Concílio apresenta a “verdadeira” liberdade: “A liberdade verdadeira é um sinal privilegiado da imagem divina no homem. Pois Deus quis deixar o homem entregue à sua própria decisão (cf. Sr 15, 14), para que busque por si mesmo o seu Criador e livremente chegue à perfeição total e beatífica, aderindo a Ele”(GS, n. 17). Se existe o direito de ser respeitado no próprio caminho em busca da verdade, há ainda antes a obrigação moral, grave para cada um, de procurar a verdade e de aderir a ela, uma vez conhecida (cf. Dignitatis Humanae, n. 2). (Veritatis Splendor, n. 34)
A liberdade, na sua essência, é algo intrínseco ao homem, conatural à pessoa humana, sinal distintivo da sua natureza. A liberdade da pessoa, de fato, tem o seu fundamento na sua dignidade transcendente: uma dignidade que lhe foi doada por Deus, seu Criador, e que a orienta para o mesmo Deus. O homem, porque foi criado à imagem de Deus (cf. Gn 1, 27), é inseparável da liberdade, daquela liberdade que nenhuma força ou constrangimento exterior jamais poderá tirar-lhe e que constitui seu direito fundamental, quer como indivíduo quer como membro da sociedade. O homem é livre porque possui a faculdade de se determinar em função da verdade e do bem. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1981, n. 5)
Jesus Cristo vai ao encontro do homem de todas as épocas, também do da nossa época, com as mesmas palavras que disse alguma vez: “Conhecereis a verdade, e a verdade tornar-vos-á livres”(Jo 8, 32). Estas palavras encerram em si uma exigência fundamental e, ao mesmo tempo, uma advertência: a exigência de uma relação honesta para com a verdade, como condição de uma autêntica liberdade; e a advertência, ademais, para que seja evitada qualquer verdade aparente, toda a liberdade superficial e unilateral, toda a liberdade que não compreenda cabalmente a verdade sobre o homem e sobre o mundo. (Redemptor Hominis, n. 12)
A liberdade, no entanto, não é somente um direito que se reclama para si próprio: ela é também um dever que se assume em relação aos outros. Para servir verdadeiramente a paz, a liberdade de cada um dos seres humanos e de cada uma das comunidades humanas, deve respeitar as liberdades e os direitos dos demais no plano individual e no plano colectivo. A liberdade encontra nesse respeito a sua limitação, mas simultaneamente também a sua lógica e a sua dignidade, porque o homem é por sua natureza social. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1981, n. 7)
O exercício da liberdade não implica o direito de dizer e fazer tudo. É falso pretender que “o homem sujeito da liberdade, baste a si mesmo, tendo por fim a satisfação do seu próprio interesse no gozo dos bens terrenos”(Libertatis Conscientia, n. 13). Por sua vez, as condições de ordem económica e social, política e cultural requeridas para um justo exercício da liberdade são muitas vezes desprezadas e violadas. Estas situações de cegueira e de injustiça agravam a vida moral e levam tanto aos fortes como os fracos à tentação de pecar contra a caridade. Fugindo da lei moral, o homem prejudica a sua própria liberdade, acorrenta-se a si mesmo, rompe a fraternidade com os semelhantes e se revela contra a verdade divina. (Catecismo da Igreja Católica, n. 1740)
Imprimiu o Criador do universo no íntimo do ser humano uma ordem, que a consciência deste manifesta e obriga peremptoriamente a observar: “mostram a obra da lei gravada nos seus corações, dando disto testemunho a sua consciência e os seus ensinamentos”(Rm 2, 15). E como poderia ser de outro modo? Pois toda a obra de Deus é um reflexo da sua infinita sabedoria, reflexo tanto mais luminoso, quanto mais esta obra participa da perfeição (cf. Sal 18, 8-11). (Pacem in Terris, n. 5)
Nos desígnios de Deus, cada homem é chamado a desenvolver-se, porque toda a vida é uma vocação. É dado a todos, em germe, desde o seu nascimento, um conjunto de aptidões e qualidades para as fazer render: desenvolvê-las será fruto da educação recebida do meio ambiente e do esforço pessoal, e permitirá a cada um orientar- se para o destino que lhe propõe o Criador. Dotado de inteligência e de liberdade, é cada um responsável tanto pelo seu crescimento como pela sua salvação. Ajudado, por vezes constrangido, por aqueles que o educam rodeiam, cada um, sejam quais forem as influências que sobre ele se exerçam, permanece o artífice principal do seu êxito ou do seu fracasso: apenas com esforço da inteligência e da vontade o homem, pode cada homem crescer em humanidade, valer mais, ser mais. (Populorum Progressio, n. 15)
Afinal, ao levar a termo a obra da redenção na Cruz, pela qual iria conquistar a salvação e a verdadeira liberdade aos homens, consumou a Sua revelação. Pois deu testemunho à verdade, sem por isso querer impô-la pela força aos que a ela resistiam. Eu reino não se defende pelas armas, mas afirma-se pelo testemunho e pela audição da verdade, cresce pelo amor com que Cristo exaltado na cruz atrai a Si os homens (cf. Jo 12, 32). (Dignitatis Humanae, n. 11)
A verdadeira liberdade, enfim, não é promovida também na sociedade permissiva, que confunde a liberdade com a licenciosidade de fazer escolhas não importa de que espécie sejam, e que proclama em nome da liberdade uma forma de amoralismo geral. É ainda propor uma caricatura de liberdade a pretensão de que o homem é livre para organizar a própria vida sem referência alguma aos valores morais e que a sociedade não tem que estar a garantir a protecção e a promoção dos valores éticos. Uma semelhante atitude é destruidora da liberdade e da paz. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1981, n. 7)
A Igreja também não fecha os olhos diante do perigo do fanatismo, ou fundamentalismo, daqueles que, em nome de uma ideologia que se pretende científica ou religiosa, defendem poder impor aos outros homens a sua concepção da verdade e do bem. Não é deste tipo a verdade cristã. Não sendo ideológica, a fé cristã não presume encarcerar num esquema rígido a variável realidade sócio- política e reconhece que a vida do homem se realiza na história, em condições diversas e não perfeitas. A Igreja, portanto, reafirmando constantemente a dignidade transcendente da pessoa, tem, por método, o respeito da liberdade. (Centesimus Annus, n. 46)
A democracia não pode existir sem um partilhado empenho por certas verdades morais sobre a pessoa e a comunidade humana. A questão fundamental para uma sociedade democrática é: “Como deveríamos viver juntos?”. Ao procurar uma resposta para esta pergunta, a sociedade pode excluir a verdade e o raciocínio morais? Certamente é importante para ... as verdades morais que consentem a liberdade, sejam transmitidas a cada nova geração. E preciso que cada geração ... saiba que a liberdade não consiste em fazer o que apraz, mas em ter o direito de fazer o que se deve. Cristo pede-nos que guardemos a verdade porque, como nos prometeu: “conhecereis a verdade e a verdade libertar-vos-á”(Jo 8, 32). Devemos guardar a verdade, que é a condição para a liberdade autêntica, a verdade que consente à liberdade realizar- se na bondade. Devemos guardar o depósito da verdade divina que nos foi transmitido na Igreja, sobretudo à luz dos desafios apresentados por uma cultura materialista e por uma mentalidade permissiva, que reduz a liberdade à licenciosidade. (João Paulo II, Homilia em Baltimor, n. 7-8)
Não é lícito do ponto de vista ético nem praticável menosprezar a natureza do homem que é feito para a liberdade. Na sociedade onde a sua organização reduz arbitrariamente ou até suprime a esfera em que a liberdade legitimamente se exerce, o resultado é que a vida social progressivamente se desorganiza e defina. (Centesimus Annus, n. 25)
III. A NATUREZA SOCIAL DO HOMEM
Deus, que tem um cuidado paternal para com todos, quis que todos os homens formassem uma só família e se tratassem mutuamente com espírito fraterno. Todos, com efeito, criados à imagem de Deus, que de um fez que todo o género humano habitar sobre a face da terra (At 17, 26), são chamados a um único e mesmo fim, ou seja, que é o próprio Deus. Por isso, o amor de Deus e do próximo é o primeiro e o máximo mandamento. Mas a Sagrada Escritura nos ensina que o amor a Deus não se pode separar do amor do próximo: (...) se há algum outro mandamento, ele se resume nestas palavras: Amarás ao teu próximo como a ti mesmo (...). A plenitude portanto da lei é o amor (Rm 13, 9-10; 1 Jo 4, 20). E isto se comprova ser de máxima importância para todos os homens que cada dia são mais dependentes uns dos outros e para o mundo que incessantemente se unifica mais. Mais ainda. Quando o Senhor Jesus reza ao Pai que “todos sejam um ... como nós somos um”(Jo 17, 21-22), abre perspectivas inacessíveis à razão humana, sugere alguma semelhança entre a união das pessoas divinas e a união dos filhos de Deus na verdade e na caridade. Esta semelhança manifesta que o homem, a única criatura na terra que Deus quis por si mesma, não pode se encontrar plena- mente se não por um dom sincero de si mesmo. A índole social do homem evidencia que o aperfeiçoamento da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade dependem um do outro. A pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais, porque, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social. A vida social não é portanto algo acrescentado ao homem: assim o homem desenvolve-se em todas as suas qualidades mediante a comunicação com os outros, pelas obrigações mútuas, pelo diálogo com os irmãos, e pode corresponder à sua vocação. (Gaudium et Spes, n. 24-25)
O princípio fundamental desta concepção básico consiste em, cada um dos seres humanos, ser e dever ser o fundamento, o fim e o sujeito de todas as instituições em que se expressa e realiza a vida social: cada um dos seres humanos considerado na realidade daquilo que é e que deve ser, segundo a natureza intrinsecamente social, e no plano divino da sua elevação à ordem sobrenatural. (Mater et Magistra, n. 218)
Certas sociedades, como a família e a cidade, correspondem mais imediatamente à natureza do homem. São-lhe necessárias. A fim de favorecer a participação do maior número na vida social, é preciso encorajar a criação de associações e instituições de livre escolha iniciativa “com fins económicos, culturais, sociais, desportivos, recreativos, profissionais, políticos, tanto no âmbito interno das comunidades políticas como no plano mundial”(MM, n. 60). Esta “socialização” exprime igualmente a tendência natural que impede os seres humanos a se associarem, para atingir objectivos que ultrapassam as capacidades individuais. Desenvolve as qualidades da pessoa, particularmente, o seu espírito de iniciativa e de responsabilidade. Ajuda a garantir os seus direitos (GS, n. 25; CA, n. 12). (Catecismo da Igreja Católica, n. 1882)
Mas cada homem é membro da sociedade: pertence à humanidade inteira. Não é apenas tal ou tal homem; são todos chamados a este pleno desenvolvimento. As civilizações nascem, crescem e morrem. Assim como as vagas na enchente da maré avançam sobre a praia, cada um pouco mais que a antecedente, assim a humanidade avança no caminho da história. Herdeiros das gerações passadas e beneficiários do trabalho dos nossos contemporâneos, temos obrigações para com todos, e não podemos desinteressar-nos dos que virão depois de nós aumentar mais o círculo da família humana. A solidariedade universal, é para nós não só um facto e um benefício, mas também um dever. (Populorum Progressio, n. 17)
Além da família, também outras sociedades intermédias desenvolvem funções primárias e constróem específicas redes de solidariedade. Estas, de fato, amadurecem como comunidades reais de pessoas e dinamizam o tecido social, impedindo-o de cair no anonimato e na massificação, infelizmente frequente na sociedade moderna. É na múltipla actuação de relações que vive a pessoa e cresce a “subjectividade” da sociedade. O indivíduo é hoje muitas vezes sufocado entre os dois pólos: o Estado e o mercado. Às vezes dá a impressão de que ele existe apenas como produtor e consumidor de mercadorias ou então como objecto da administração do Estado, esquecendo-se que a convivência entre os homens não se reduz ao mercado nem ao Estado, já que a pessoa possui em si mesma um valor singular, ao qual devem servir o Estado e o mercado. O homem é, acima de tudo, um ser que procura a verdade e se esforça por vivê-la e aprofundá-la num diálogo contínuo que envolve as gerações passadas e as futuras. (Centesimus Annus, n. 49)
Pelo contrário, da concepção cristã da pessoa segue-se necessariamente uma justa visão da sociedade. Segundo a Rerum Novarum e toda a doutrina social da Igreja, a sociabilidade do homem não se esgota no Estado, mas realiza-se em diversos aglomerados intermédios, desde a família até aos grupos económicos, sociais, políticos e culturais, os quais, provenientes da própria natureza humana, são dotados subordinando-se sempre ao bem comum da sua própria autonomia. (Centesimus Annus, n. 13)
IV. DIREITOS HUMANOS
Ao dispormo-nos a tratar dos direitos do homem, o ser humano tem direito à existência, à integridade física, aos recursos correspondentes a um digno padrão de vida: tais são especialmente o alimento, o vestuário, a moradia, o repouso, a assistência médica, os serviços sociais indispensáveis. Segue-se daí que a pessoa tem também o direito de ser amparada em caso de doença, de invalidez, de viuvez, de velhice, de desemprego forçado e em qualquer outro caso de privação dos meios de sustento por circunstâncias independentes da sua vontade. (Pacem in Terris, n. 11)
Após a queda do totalitarismo comunista e de muitos outros regimes totalitários e de “segurança nacional”, assistimos hoje à prevalência, não sem contrastes, do ideal democrático, em conjunto com uma viva atenção e preocupação pelos direitos humanos. Mas, exactamente por isso, é necessário que os povos, que estão a reformar os seus regimes, dêem à democracia um autêntico e sólido fundamento mediante o reconhecimento explícito dos referidos direitos (Redemptor Hominis, n. 17). (Centesimus Annus, n. 47)
Numa convivência humana bem constituída e eficiente, é fundamental o princípio de que cada ser humano é pessoa, isto é, natureza dotada de inteligência e de vontade livre. Por essa razão, possui em si mesmo direitos e deveres, que emanam directa e simultaneamente da sua própria natureza. Trata-se, por conseguinte, de direitos e deveres universais, invioláveis, inalienáveis. (Pacem in Terris, n. 9)
Se os direitos do homem são violados em tempo de paz, isso torna-se particularmente doloroso e, sob o ponto de vista do progresso, representa um incompreensível fenómeno de luta contra o homem, que não pode de maneira alguma pôr-se de acordo com qualquer programa que se autodefina “humanístico”. (Redemptor Hominis, n. 17)
Compete outros sim à pessoa humana a legítima tutela dos direitos: tutela eficaz, imparcial, dentro das normas objectivas da justiça. Assim Pio XII, nosso predecessor de feliz memória, adverte com estas palavras: “Da ordem jurídica intencionada por Deus emana o direito inalienável do homem à segurança jurídica e a uma esfera jurisdicional bem determinada, ao abrigo de toda e qualquer impugnação arbitrária”(cf. Pio XII, Mensagem radiofónica da vigília do Natal de 1942). (Pacem in Terris, n. 27)
O respeito pela pessoa humana implica que se respeitem os direitos que decorrem da sua dignidade de criatura. Estes direitos são anteriores à sociedade e se lhe impõem. São elas que fundam a legitimidade moral de toda autoridade; conculcando-os ou recusando- se a reconhecê-los na sua lei positiva, uma sociedade mina, a sua própria legitimidade moral (cf. PT, n. 65). Sem esse respeito, uma autoridade só pode apoiar-se na força ou na violência para obter a obediência de seus súditos. Cabe à Igreja lembrar esses direitos a memória dos homens de boa vontade e distingui-los das reivindicações abusivas ou falsas. (Catecismo da Igreja Católica, n. 1930)
E quando as relações de convivência se colocam em termos de direitos e de deveres, os homens abrem-se ao mundo dos valores culturais e espirituais, aos quais o da verdade, justiça, amor, liberdade; tornando-se cônscios de pertencerem àquele mundo. Ademais são levados por essa estrada a conhecer melhor o verdadeiro Deus transcendente e pessoal e a colocar então as relações entre eles e Deus como fundamento da sua vida: da vida que vivem no próprio íntimo e da vida em relação com os outros homens. (Pacem in Terris, n. 45)
Ora pelo fato de as sociedades particulares não terem existência senão no seio da sociedade civil, da qual são como outras tantas partes, não se segue, falando em geral e considerando apenas a sua natureza, que o Estado possa negar-lhe a existência. O direito de existência foi-lhes outorgado pela própria natureza; e a sociedade civil foi instituída para proteger o direito natural, não para o aniquilar. Por esta razão, uma sociedade civil que proibisse as sociedades públicas e particulares, atacar-se-ia a si mesma, pois todas as sociedades públicas e particulares tiram a sua origem de um mesmo princípio: a natural sociabilidade do homem. (Rerum Novarum, n. 32)
Deve-se concluir que, no relacionamento humano, a determinado direito natural de uma pessoa corresponde o dever de reconhecimento e respeito desse direito por todos os demais. É que todo direito fundamental do homem encontra a sua força e autoridade na lei natural, a qual, ao mesmo tempo que o confere, impõe também algum dever correspondente. Por conseguinte, o é que reinvidincam os próprios direitos, mas se esquecem por exemplo dos seus deveres ou lhes dão menor atenção, assemelham-se a quem constrói um edifício com uma das mãos e, com a outra, o destrói. (Pacem in Terris, n. 30)
Ao contrário, universalmente prevalece hoje a opinião de que todos os seres humanos são iguais entre si por dignidade de natureza. As discriminações raciais não encontram nenhuma justificação, pelo menos no plano doutrinal. É isto de um alcance e importância imensa para a estruturação do convívio humano segundo os princípios que acima recordamos. Pois, quando numa pessoa surge a consciência dos próprios direitos, nela nascerá forçosamente a consciência do dever: no titular de direitos, o dever de reclamar esses direitos, como expressão da sua dignidade, nos demais, o dever de reconhecer e respeitar tais direitos. (Pacem in Terris, n. 44)
Dotados de alma racional e criados à imagem de Deus, todos os homens têm a mesma natureza e a mesma origem; redimidos por Cristo, todos gozam da mesma vocação e destino divino: deve-se portanto reconhecer cada vez mais a igualdade fundamental entre todos os homens. Na verdade nem todos os homens se equiparam na capacidade física, que é variada, e nas forças intelectuais ou morais, que são diversas. Contudo qualquer forma de discriminação nos direitos fundamentais da pessoa, seja ela social ou cultural, ou funde-se no sexo, raça, cor, condição social, língua ou religião, deve ser superada e eliminada, porque é contrária ao plano de Deus. É de lamentar realmente que aqueles direitos fundamentais da pessoa não sejam garantidos por toda a parte: É caso quando se nega à mulher a faculdade de escolher livremente o seu esposo, de abraçar, o seu estado de vida ou o acesso a uma cultura e educação que se admitem para o homem. Além disso, ainda que haja entre os homens justas diferenças, a igual dignidade das pessoas postula que se chegue a uma condição de vida mais humana e mais justa. Pois as excessivas desigualdades económicas e sociais entre os membros e povos da única família humana provocam escândalo e são contrárias à justiça social, à equidade, à dignidade da pessoa humana e à paz social e internacional. As instituições humanas, particulares ou públicas, se esforcem por servir à dignidade e ao fim do homem. Ao mesmo tempo lutem denodadamente contra qualquer espécie de servidão tanto social quanto política e respeitem os direitos fundamentais do homem sob qualquer regime político. Além disso; é necessário que estas instituições pouco a pouco se adaptem às exigências espirituais, superiores a tudo, ainda que às vezes seja necessário um tempo bastante longo para chegarem ao fim desejado. (Gaudium et Spes, n. 29)
Desta justa libertação, ligada à evangelização e que visa alcançar o estabelecimento de estruturas que salvaguardem as liberdades humanas, não pode ser separada a necessidade de garantir todos os direitos fundamentais do homem, entre os quais a liberdade religiosa ocupa um lugar de primária importância. (Evangelii Nuntiandi, n. 39)
V. LIBERDADE RELIGIOSA
O Sínodo Vaticano declara que a pessoa humana tem direito à liberdade religiosa. Consiste tal liberdade no seguinte: os homens todos devem ser imunes da coacção, tanto por parte de pessoas particulares quanto de grupos sociais e de qualquer poder humano, de tal sorte que em assuntos religiosos ninguém seja obrigado a agir contra a própria consciência, nem se impeça de agir de acordo com ela, em particular e em público, só ou associado a outrem, dentro dos devidos limites. (Dignitatis Humanae, n. 2)
Certamente, a limitação da liberdade religiosa das pessoas e das comunidades não é apenas uma sua dolorosa experiência, mas atinge antes de mais nada a própria dignidade do homem, independentemente da religião professada ou da concepção que elas tenham do mundo. A limitação da liberdade religiosa e a sua violação estão em contraste com a dignidade do homem e com os seus direitos objectivos. (Redemptor Hominis, n. 17)
Nenhuma autoridade humana tem o direito de intervir na consciência de nenhum homem. Esta é também testemunha da transcendência da pessoa frente à sociedade, e, como tal, é inviolável. Contudo, não é algo absoluto, situado por cima da verdade e do erro; aliás, a sua natureza íntima implica uma relação com a verdade objectiva, universal e igual para todos, à qual todos podem e devem buscar. Nesta relação com a verdade objectiva a liberdade de consciência encontra a sua justificação, como condição necessária para a busca da verdade digna do homem e para a adesão à mesma, quando foi adequadamente conhecida. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1991, n. 1)
Assim também a nossa missão, ainda que seja anúncio de verdade indiscutível e de salvação necessária, não se apresentará armada de coerção externa, mas oferecerá o seu dom salvífico só pelas vias legítimas da educação humana, da persuasão interior e do trato ordinário, respeitando sempre a liberdade pessoal e civil [do indivíduo]. (Ecclesiam Suam, n. 43)
Primeiro que tudo a liberdade religiosa, exigência insuprível da dignidade de todos e de cada um dos homens, constitui uma pedra angular do edifício dos direitos humanos; e portanto, é um factor insubstituível do bem das pessoas e de toda a sociedade, assim como da realização pessoal de cada um. Disto resulta, consequentemente, que a liberdade das pessoas consideradas individual- mente e das comunidades professarem e praticarem a própria religião é um elemento essencial da convivência pacífica dos homens. A paz, que se constrói e se consolida em todos os níveis da convivência humana, lança as próprias raízes na liberdade e na abertura das consciências para a verdade. (Mensagem para o Dia Mundial da Paz de 1988, Introdução)
Os problemas humanos mais debatidos e diversamente resolvidos na reflexão moral contemporânea, estão ligados, ainda que de várias maneiras, a um problema crucial: o da liberdade do homem. Não há dúvida que a nossa época adquiriu uma percepção particularmente viva da liberdade. “Os homens de hoje tornam-se cada vez mais conscientes da dignidade da pessoa humana”, como já constatava a Declaração conciliar Dignitatis Humanae sobre a liberdade religiosa (n. 1). Daí a observação de que os homens possam “agir segundo a própria convicção e com liberdade responsável, não forçados por coacção, mas levados pela consciência do dever”(n. 1). Em particular, o direito à liberdade religiosa e ao respeito da consciência no seu caminho para a verdade é sentido cada vez mais como fundamento dos direitos da pessoa, considerados no seu conjunto (cf. Redemptor Hominis, n. 17; Libertatis Conscientia, n. 19). (Veritatis Splendor, n. 31)
Exame de "Doutrina Social da Igreja (Pessoa Humana)"
de Hélder Gonçalves a 18.06.2005
Escola Superior de Teologia e Ciências Humanas de Viana do Castelo
Professor: Padre José Maria da Costa Reis Ribeiro
Avaliação Final: 16 Valores
HÉLDER GONÇALVES
"Disto resulta, conseqüentemente, que a liberdade das pessoas consideradas individual- mente e das comunidades professarem e praticarem a própria religião é um elemento essencial da convivência pacífica dos homens."
ResponderEliminarQue nenhuma pessoa seja obrigada pela força a confessar Jesus como Deus e Senhor e a se batizar, isto a Igreja sempre ensinou. Mas que a Igreja deve estimular, defender, favorecer, as religiões não cristãs, isto a Igreja NUNCA ENSINOU. Pelo contrario, os primeiros cristãos foram mortos por não oferecer incenso aos deuses do Império romano e por não reconhecer o Imperador como um Deus. O império Romano foi o maior exemplo de ecumenismo na história. Aceitava todos os deuses. Com este trecho a Igreja praticamente fica sem argumentos para pregar o Evangelho aos outros povos. Por isto que hoje ser missionário para muitos padres é apenas anunciar a justiça, a fraternidade, defender os costumes pagãos como defesa da cultura. Jesus como Redentor e Senhor não é anunciado. E assim o mandato de Jesus não é obedecido. Não fosse o fervor missionário dos apóstolos e dos primeiros cristãos que anunciavam Jesus e afirmavam que todos os outros eram falsos o cristianismo não teria se tornado a maior religião da Terra.