segunda-feira, 11 de março de 2013

Fé sem Fingir

Na segunda epístola a Timóteo, São Paulo evoca a fé sem fingir de Timóteo (1,5). Uma fé sem fingir é literalmente uma fé não hipócrita, uma fé sem hipocrisia. Trata-se de uma fé que não admite incoerências entre aquilo em que se acredita e o que se vive. Compreendemos que São Paulo louve isso em Timóteo. 

Quem não faria, ao ver alguém que assume todas as consequências da sua fé? 
Opostamente, recusar pô-las em prática desacredita todas as palavras da fé.
Mas também pode haver uma outra forma de hipocrisia: utilizar a fé para o que ela não oferece, procurar «passar-lhe à frente com teorias mais atractivas, mais interessantes, mais subtis, confrontar Cristo com causas
que se afastam do Evangelho. 

Se é verdade que qualquer fé desabrocha quando é posta em prática e quando é esclarecida, a fé não pode ser ela própria posta ao serviço de determinados interesses. O que ela dá permanece do domínio da fé. 
A fé perde a sua natureza mal é transformada em ideologia ou gnosticismo.

No plano intelectual, por exemplo, a fé está na base de toda e qualquer reflexão. Nunca será mais que uma fé pobre, recebida sempre de novo. 
Não nos podemos afastar desta base. 

No domínio da vida espiritual, as pessoas com maior discernimento não param de repetir que não são os sentimentos ou as experiências extraordinárias que alimentam a comunhão com Deus. Esta vive-se sempre a partir de uma simples abertura, pois a comunhão com Deus só pode oferecer-se gratuitamente, ultrapassando de longe tudo o que possamos ter feito. 
Como diz São João da Cruz no princípio da Subida ao monte Carmelo: «A fé, só a fé, é o meio mais próximo e mais proporcionado de unir a alma a Deus.»
Misteriosamente, é esta fé pobre, «só esta fé», que pode tornar-se fonte de reconhecimento. 

Parece tão pouco e o que oferece aparentemente vale tão pouco na vida do mundo. E, no entanto, como podemos agradecer devidamente termos sido atraídos para Cristo, termos aprendido a conhecê-Lo pessoalmente e
termos recebido d’Ele uma certa luz no coração? 

Reconhecimento pelo dom da fé, mas reconhecimento também pelo dom que é o próprio Cristo. Pois querendo dizer-nos o que Ele próprio é, Deus não poderia ter ido mais longe do que o que fez em Cristo.

Ao escrever a uma igreja – à de Colossos – onde se exploravam outras fontes de certezas para além das dadas pela fé, São Paulo, cada vez que faz o ponto da situação e em cada uma das suas exortações, acrescenta de forma significativa um apelo à acção de graças (Colossenses 1,12; 2,7; 3,15; 4,2). 

De facto, mesmo quando se sente muito fraca, a fé fortifica-se mantendo os olhos abertos a tudo o que nos foi dado e conscientemente dando graças por isso.

Assim, uma fé sem fingir não é uma fé ingénua que recusa avançar e encarar as questões de frente.

Pelo contrário, é uma fé que se deixa levar pelo reconhecimento e que, desta forma, mantém acesa a pequena chama depositada no coração. 
O despojamento de uma fé assim não tem nada de triste nem de austero, pois não corresponde a um sentimento estranho de não se receber o suficiente. Antes chama a que cada vez mais vivamos uma relação pessoal com Cristo no mesmo sentido em que São Paulo dela fala aos Filipenses: «Considero que tudo isso foi mesmo uma perda, por causa da maravilha que é o conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor» (3,8)

Se há felicidade na fé – e os primeiros cristãos consideravam-se felizes por acreditar –, essa felicidade não vem unicamente das perspectivas abertas pela fé. Vem também do conhecimento de Cristo, numa comunhão concreta e íntima com Ele.

Certamente, a nossa fé inclui também elementos mais impessoais. O mistério da criação e o da presença do Espírito nessa criação remetem para dimensões de infinito que nos ultrapassam. 

No diálogo com religiões da Índia, mas também perante as ciências exactas, é importante ter bem consciência disto. Por isso, a descoberta de Cristo, a relação com Ele, o olhar que procura a sua face, será sempre o coração da fé. 

Os elementos mais impessoais esclarecem-se a partir do centro. Assim São Paulo situa Cristo na sua relação com o universo tal como foi criado em todas as suas dimensões e a sua história (Colossenses 1,15-20) e ao mesmo tempo considera os seus próprios sofrimentos uma forma muito pessoal de comungar do destino que ainda está reservado a Cristo neste mundo (Colossenses 1,24). 

A partir do fogo que arde no seu coração iluminam-se as perspectivas mais longínquas.

HÉLDER GONÇALVES

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