A salvação, como
objectivo alcançado mediante a redenção, é essa nova situação para a qual a
humanidade foi transferida e que, desde a ressurreição de Jesus, é n’Ele
realidade consumada e plena e nos que n’Ele acreditam e n’Ele são baptizados,
realidade incoada neste mundo, orientada para a sua consumação e plenitude no
mundo futuro. Falar de salvação neste sentido passivo implica pois a
necessidade de distinguirmos entre salvação incoada e plenitude da salvação.
A salvação em
plenitude é realidade actual em Jesus Cristo ressuscitado e elevado ao Céu como
cabeça da humanidade redimida, que constitui o seu Corpo Místico. Em relação a
cada individuo humano, ela será a sua plena participação nessa mesma sorte de
Cristo ressuscitado e glorioso junto do Pai, após a sua passagem pela morte.
Ela será o que chamamos, em termos simples e correntes, a posse da vida eterna,
ou da salvação eterna, isto é, o Céu.
Que relação tem isso
com a existência humana, enquanto salvação? Isso significa a plena e definitiva
ultrapassagem da situação de perdição – da sujeição ao sofrimento, ao pecado e
à morte, enfim, à contingência e fragilidade da condição humana. Em relação à
ânsia de infinito inscrita no coração do homem, isso significa a sua plena
realização; e portanto, a plenitude da sua felicidade, a beatitude
indestrutível; e por conseguinte, a saída feliz e absoluta para o seu drama
existencial, o fim de toda a inquietude, “a paz do sábado que não entardece”.
A salvação plena e
absoluta tem como antítese perfeita o absoluto da perdição, ou seja, aquela
perdição para a qual não há mais hipótese nem esperança de salvação. Tal é a
eterna condenação, enquanto absolutização e eternização da situação de perdição,
pela recusa absoluta e definitiva da mão estendida de Deus, livremente decidida
pelo homem e, pela morte, fixada e firmada para a eternidade. No essencial, é
isso o inferno.
Tanto a plenitude da
salvação como o absoluto da perdição são de ordem transcendente e escatológica,
isto é, dão-se para além da morte, na vida e no mundo futuro. Mas é neste mundo
que o homem é chamado a, livremente, decidir sobre a sua sorte transcendente e
eterna, projectando para a eternidade a sua existência temporal. A salvação é
por Deus oferecida a todos gratuitamente. Ao homem pertence acolhê-la ou
recusá-la. Em rigor, pois, a salvação é, em última análise, responsabilidade do
homem. O que decide a condenação é a fixação do homem, por uma opção
fundamental, no seu pecado, enquanto “aversio a Deo, conversio ad creaturas”
(Santo Agostinho).
Não só, porém, a
eterna condenação, mas também a salvação eterna se começa neste mundo e nesta
vida. É a esse começo ou esboço de salvação, já neste mundo, que chamamos a
salvação incoada e relativa. Com efeito, se a salvação plena e absoluta é a
plena realização humana, tudo aquilo que, neste mundo e nesta vida, contribui
para a verdadeira realização e felicidade do homem – isto é, tudo aquilo que
vai na linha da superação dos dramas humanos do sofrimento, do pecado e da
morte – é já salvação incoada e relativa. Note-se porém que falamos da
verdadeira realização e felicidade humanas, isto é, daquela que se dá na
abertura para Deus e para a salvação eterna, já que tal abertura faz parte da verdade
do homem. Qualquer realização em sentido contrário não é verdadeira realização,
mas antes destruição do homem e principio ou esboço da condenação, ainda que,
na aparência imediata, isso não seja evidente.
A salvação incoada,
tal como a salvação eterna, é de ordem sobrenatural, ou seja, é, no essencial,
obra da graça de Cristo oferecida ao homem e por este livremente acolhida. Mas
essa graça sobrenatural atinge também a ordem natural da existência humana, na
medida em que o homem concreto é uma pessoa una e integradora do natural no
sobrenatural: “não se pode nunca dissociar o plano da Criação do plano da
Redenção” (E.N. 31). Na pessoa concreta, o sobrenatural e o natural, embora
distintos, estão pois unificados, de tal forma que, para o homem que vive sob a
acção da graça salvífica de Cristo, podemos dizer que “tudo é graça” (1Cor
10,31).
Concretizando um
pouco, podemos dizer que a salvação incoada é, antes de mais e no essencial e
decisivo, a participação na graça na graça de Cristo Redentor, a qual se dá
pelo baptismo e pelos restantes sacramentos, com especial relevo para o da
penitência, a que acrescem outras “acções sacramentais” (que significam e
realizam incoativamente a salvação) – palavra de Deus, acções litúrgicas, etc.
– através das quais Deus canaliza para o homem crente a graça da salvação,
infundindo e alimentando nele essa vida divina que é semente de vida eterna e
que os teólogos costumam chamar “graça santificante”. O homem é permanentemente
chamado a acolher, a defender e a robustecer em si essa vida divina, pela fé e
pelas boas obras, nas quais se inclui em primeiro lugar a resistência ao
pecado. Nesta linha, a salvação incoada é de ordem directamente sobrenatural,
situa-se directamente na ordem da Redenção.
Mas salvação incoada é
também a participação, cristãmente ordenada, nos bens deste mundo. Ou seja: a
participação nos bens deste mundo, na medida em que – estando liberta da
corrupção do pecado, que tudo endereça no sentido da condenação – não impede
mas antes se integra na ordem sobrenatural da salvação, ou seja, na medida em
que ela representa a ordem da Criação integrada na ordem da Redenção, é também
salvação incoada (E.N. 31): “Tudo é vosso… vós porém sois de Cristo e Cristo é
de Deus” (1Cor 3, 21-23). Nesta linha, a salvação, embora directamente se situe
na ordem natural da existência humana, indirectamente é também de ordem
sobrenatural, na medida em que nela se encontra integrada e como que por ela
assumida.
Voltando à imagem do
êxodo, podemos dizer que a salvação incoada é a travessia do deserto, enquanto
que a salvação plena e definitiva é a posse da terra de Israel.
HÉLDER GONÇALVES
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