Cardeal Mauro Piacenza, Prefeito da
Congregação para o Clero concede entrevista exclusiva
Entrevista exclusiva concedida à ZENIT pelo Cardeal Mauro Piacenza,
Prefeito da Congregação para o Clero, em vista do 50° aniversário da abertura
do Concílio Vaticano II.
ZENIT: Eminência, com esta entrevista, a Zenit pretende
inaugurar uma série de contribuições para o Ano da Fé, tendo em vista o
Concílio Vaticano II, em ocasião do seu 50º aniversário. Por que tanto debate
sobre este evento eclesial?
Card.Piacenza: O debate é sempre positivo, porque é um sinal de
vitalidade e vontade de aprofundar; e se o tema do debate não é exclusivamente
humano, mas um Concílio Ecuménico ou seja, um evento humano e
sobrenatural, pois é o Espírito Santo que conduz a Igreja à progressiva e plena
compreensão da única Verdade revelada, então não surpreende que a compreensão
dos ditames conciliares requeira décadas de discussões – e até mesmo de debates
– sempre no sulco da escuta daquilo que o Espírito Santo quis dizer à Igreja
naquele extraordinário momento.
ZENIT: Qual deveria ser um justo posicionamento diante
do Concílio?
Card.Piacenza: Aquele de escuta! O
Concílio Ecuménico Vaticano II foi o primeiro Concílio da “mídia”,
cujas dinâmicas fisiológicas de confronto e respectivos textos foram
imediatamente divulgados pelos meios de comunicação, que não captaram sempre a
sua verdadeira expressão e, com frequência, orientaram para uma compreensão
mundanizante. Creio que seja particularmente interessante – e, talvez,
necessário – retomar, ou melhor, buscar uma autêntica escuta daquilo que o
Espírito Santo quis dizer à toda a Igreja através dos Padres conciliares. Tal
dinâmica de aprofundamento, este “justo posicionamento” realiza-se através da
leitura directa dos textos. É a partir desta leitura que se pode
inferir o autêntico espírito do Concílio, a sua exacta localização
dentro da história eclesial e a génese editorial.
ZENIT: Algumas escolhas, também do Magistério, às vezes
parecem que vão “contra” o Concílio.
Card.Piacenza: Basta considerar os pronunciamentos do
Magistério autêntico pós-Conciliar, em sua dimensão universal, para constatar
que isto não ocorreu. Entretanto, outra questão é favorecer uma correta
recepção das decisões conciliares, esclarecer o significado de determinadas
afirmações e, às vezes, corrigir devidamente interpretações unilaterais, ou até
mesmo erradas, artificialmente introduzidas por quem lê os eventos pneumáticos
eclesiais com lentes exclusivamente humanas e historicistas. O serviço
eclesial do Magistério, que tem suas próprias raízes na explícita Vontade
divina, prepara os Concílios Ecuménicos, neles actua com sua
máxima expressão e, nas intervenções sucessivas, a eles obedecem, favorecendo
uma correta recepção.
ZENIT: O que realmente significa a “hermenêutica da
continuidade” de que fala o Santo Padre?
Card.Piacenza: Segundo aquilo que foi explicitamente indicado
pelo Santo Padre, é o único modo de ler e de interpretar todo
Concílio Ecuménico e, portanto, também o Concílio Vaticano II. A
continuidade do único Corpo eclesial, antes de ser um critério hermenêutico, ou
seja, de interpretação dos textos, é uma realidade teológica que tem suas
raízes no ato de fé que nos faz professar: “Creio na Igreja Una”. Por esta
razão não é possível pensar numa espécie de dicotomia entre o pré e o pós
Concílio Vaticano II. Certamente deve ser reprovado o posicionamento de quem vê
no Concílio Ecuménico Vaticano II um “novo início” da Igreja e também
daqueles que vêem a “verdadeira Igreja” somente antes deste Concílio histórico.Ninguém
pode, arbitrariamente, decidir se e quando inicia a “verdadeira Igreja”.
Nascida do costado de Cristo e corroborada pela efusão do Espírito em
Pentecostes, a Igreja é Una e Única, até a consumação da história, e a comunhão
que nela se realiza é para a eternidade. Alguns sustentam que a hermenêutica da
reforma na continuidade seja somente uma das possíveis hermenêuticas,
juntamente com aquela da descontinuidade e da ruptura. O Santo Padre
recentemente definiu como inaceitável a hermenêutica da descontinuidade
(Audiência à Assembleia Geral da Conferência Episcopal Italiana, 24
de maio de 2012). Além disso, trata-se de algo óbvio, caso contrário não se
seria católico e se injectaria como que um germe de infecção e de uma
progressiva decadência; se provocaria, igualmente, um grave dano ao ecumenismo.
ZENIT: Mas é possível que seja tão difícil compreender
esta realidade?
Card.Piacenza: Sabes melhor do que eu como a compreensão,
também de realidades evidentes, pode ser condicionada por aspectos emotivos,
biográficos, culturais e, até mesmo, ideológicos. É humanamente compreensível
que quem viveu durante sua juventude, o legítimo entusiasmo que gerou o
Concílio, desejoso de superar certas “obstruções” – que deveriam necessária e
urgentemente serem tiradas da Igreja – possa interpretar como perigo de
“traição” do Concílio toda expressão que não coadune com o mesmo “estado
emotivo”. É necessário, para todos, um salto radical de qualidade na
aproximação dos textos conciliares, para que se compreenda, depois de meio
século daquele evento extraordinário, o que realmente o Espírito Santo sugeriu
e sugere à Igreja. Cristalizar o Concílio na sua necessária, mas
insuficiente, “dimensão entusiástica” equivale a não desenvolver um bom serviço
ao trabalho de recepção do Concílio, que permanece quase paralisada, pois com o
passar dos anos pode-se afrontar e se podem compartilhar avaliações sobre os
textos objectivos mas não sobre os estados emotivos e sobre os
entusiasmos historicamente assinalados.
ZENIT: Sabe-se que Vossa Eminência sempre falou com
grande entusiasmo do Concílio Vaticano II. O que ele representou para Vossa
Eminência?
Card.Piacenza: Como não se entusiasmar com um evento tão
extraordinário como um Concílio Ecuménico Nele, a Igreja refulge em
toda a sua beleza: Pedro e todos os Bispos em comunhão com ele, colocam-se em
atitude de escuta do Espírito Santo, daquilo que Deus tem a dizer à Sua Esposa,
procurando explicitar – segundo os auspícios do Beato João XXIII – no hoje da
história, as imutáveis verdades reveladas e lendo os sinais de Deus nos sinais
dos tempos, e os sinais dos tempos à luz de Deus! Dizia o mesmo Pontífice na
solene alocução de abertura do Concílio, no dia 11 de outubro de 1962:
“Transmitir pura e íntegra a doutrina, sem atenuações nem subterfúgios [...]
esta doutrina certa e imutável, que deve ser fielmente respeitada, seja
aprofundada e exposta de forma a responder às exigências do nosso tempo”. Nos
anos do Concílio eu era um jovem estudante, depois, seminarista e o meu
ministério sacerdotal, desde os primeiros passos desenvolveu-se à luz do
Concílio e das suas reformas. De fato, fui ordenado sacerdote em 1969. Não
posso negar que sou filho do Concílio que, também graças aos meus mestres,
procurei acolher, desde o início, as indicações conciliares segundo a
hermenêutica da unidade e continuidade. Esta reforma na continuidade
pessoalmente sempre a senti, vivi e, também como docente, ensinei.
ZENIT: Como Prefeito da Congregação para o Clero,
acredita que os Sacerdotes receberam bem o Concílio?
Card.Piacenza: Certamente, como porção eleita do Povo de Deus,
os sacerdotes são aqueles que, na Igreja, melhor conhecem e mais aprofundaram
os ensinamentos conciliares. Entretanto, parece-me que não faltaram as mesmas
problemáticas que antes evidenciei, seja em relação à uma justa hermenêutica da
reforma na continuidade, seja no que diz respeito à devida aproximação não
predominantemente emotiva ao evento conciliar. Se, neste Ano da Fé,
todos tivéssemos a humildade e a boa vontade de tomar em mãos os textos do
Concílio, naquilo que realmente disseram e não na “vulgata”, que teve uma certa
propagação, descobriríamos como o Concílio Vaticano II foi realmente profético
e muitas das suas indicações estejam ainda diante de nós, como um horizonte a
ser contemplado e uma meta a ser alcançada, com a ajuda da Graça. Certamente,
para que tal obra se realize, é necessária uma grande dose de humildade e uma
certa capacidade de superação de um juízo pré-constituído, para que se possa
acolher de novo uma verdade que, por muito tempo, foi concebida de modo
diverso.
ZENIT: Sobre quais pontos poder-se-ia focalizar a
recepção dos documentos conciliares?
Card.Piacenza: Evidenciaria um ponto de particular tensão, que
representa a reforma litúrgica, mesmo porque constitui o elemento de maior
visibilidade da Igreja. O Servo de Deus Paulo VI, o Beato João Paulo II e o
Santo Padre Bento XVI, em vários momentos sublinharam a importância da liturgia
como lugar no qual se realiza plenamente o ser da Igreja. Mas, infelizmente,
como se pode notar em vários casos, ainda estamos longe de um equilíbrio mútuo
a este respeito. Certamente, uma liturgia dessacralizada ou reduzida à
“representação humana”, em que se desvanece até ao ponto de perder a dimensão
cristológica e teológica, não é aquilo que a letra e o espírito da Sacrosantum
Concilium desejava. Entretanto, isto não justifica o posicionamento
daqueles que, adoptando a hermenêutica da descontinuidade, recusam a reforma
conciliar, considerando-a como uma “traição” da “verdadeira Igreja”.
ZENIT: Existem inovações mais importantes que as
litúrgicas?
Card.Piacenza: Vista a centralidade da Liturgia, “fonte e
centro” da vida da Igreja (cf. SC,10), não falaria de maior importância.
Certamente o Concílio procurou valorizar as verdades evangélicas, que hoje
representam um patrimônio comum da catolicidade. Em tal sentido, bastaria
pensar a feliz evidência que se dá à vocação universal à santidade de todos os baptizados que favoreceu o nascimento e o desenvolvimento de tantas novas
experiências. Além disto, é preciso recordar a abertura em relação aos cristãos
de outras confissões, que fez emergir o valor da unidade, com toda a sua
beleza, como um necessário atributo da Igreja e como um dom gratuitamente
oferecido por Cristo. Este dom deve ser acolhido sempre, através de uma
purificação contínua dos que a Ele pertencem. A importância da colegialidade
episcopal, que está entre as expressões mais eficazes da comunhão eclesial e
mostra ao mundo como a Igreja é necessariamente um corpo unido. A compreensão
orgânica do Ministério Ordenado, a serviço do sacerdócio baptismal
que concebe presbíteros e diáconos intimamente unidos ao próprio Bispo, como expressão
de uma comunhão sacramental no serviço à Igreja e aos homens, representou
um objectivo e feliz desenvolvimento da compreensão da face da Igreja
tal como Nosso Senhor quis delinear.
ZENIT: Eminência, neste momento a Igreja dedica-se ao
Sínodo sobre a nova Evangelização e o Ano da Fé. Se tivesse que dizer uma
palavra sintética aos sacerdotes, o que diria?
Card.
Piacenza: À luz da fé: Sacerdote, torne-se a
cada dia aquilo que és!
RICARDO IGREJA
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