Começo por fazer
duas perguntas que podemos encontrar nos Evangelhos: uma colocada a Jesus e
outra em que é Ele que nos interroga.
Em primeiro
lugar, a pergunta que as multidões fazem a Jesus: «Quem és Tu, afinal?» (João
8,25).
Acreditar é
difícil. Isto deve-se à natureza da fé, porque acreditar expõe-nos ao que não
pode ser provado.
Na medida
em que a fé é autêntica, haverá sempre fragilidade nela, uma fragilidade que
lhe é inerente.
No entanto,
a dificuldade em acreditar reside também na identidade deste Jesus no qual eu
creio. Queria perguntar-lhe:
«Quem és Tu, afinal?»
Mesmo se é
verdade que a fé é em si frágil, em última instância a interrogação vem-nos da
tua pessoa, Senhor Jesus. Quem és Tu, afinal?
Se tivesses
sido uma grande figura religiosa, poderia admirar-Te e tomar a tua vida e os
teus ensinamentos como modelo
de vida. Mas ficaria distante e não acreditaria em Ti. de tanto Te evocar
interiormente poderia tornar-Te
próximo de mim, mas a fé ficaria de lado, não me abandonaria. Talvez até
pudesse sentir que não tinha
percebido quem Tu eras.
Mas foste
tão diferente das grandes figuras religiosas da humanidade. É verdade que foste
muito religioso: os
Evangelhos relatam a forma como oravas. Mas até nesse campo continuas a ser
diferente. A Tua vida
assemelha-se
tão pouco a uma subida penosa. Nunca Te apresentas como uma excepção genial da humanidade.
Não foram a ascese, a meditação, a luta ou o sofrimento que contribuíram para
que atingisses um estado
superior de experiência.
O movimento
da tua vida é outro. Não é uma lenta conquista, uma dura iniciação, um
aperfeiçoamento progressivo. Fazendo um percurso normal de evolução em termos
de crescimento humano, Tu és um ser que, desde o início, vive como um dom. Está
tudo em Ti, no que aceitaste ser, ou seja na tua natureza.
Pelo que
dizes de Deus não parece que O tenhas descoberto depois de um longo caminho.
Falas d’Ele como se fosse
tudo evidente. De tal forma que sabes falar d’Ele de uma maneira que até uma
criança é capaz de compreender.
E quando nos dizes para amar os inimigos – verdade que constitui a chave de
toda a existência
humana na terra, verdade última para além da qual não é preciso procurar
qualquer outra mais profunda –,
expressa-la não como fruto de uma laboriosa procura, mas como uma evidência
dada com aquilo que
és. Não precisas de justificar este chamamento, de apresentar as razões desta
verdade. Na tua boca, ela é
simples e clara.
A
necessidade que marca toda a experiência humana, necessidade de vencer, de conseguir,
não caracterizam a tua vida. Pelo menos quando leio os Evangelhos, pareces,
acima de tudo, receber, receber sempre.
O teu
próprio ser é inteiramente um dom do Alto. A linguagem simbólica di-lo bem: Tu
és Aquele que vem do Alto (João 3,31).
Vens de
outro lugar. Há na tua vida uma naturalidade, uma inocência que só se explica
desta maneira. A tua origem parece, de facto, diferente da nossa. Nem mesmo os
mais religiosos e os mais cultos foram tão simples.
Quando
tenho dificuldade em explicar-me o teu nascimento e a tua ressurreição,
basta-me centrar o olhar naquilo que, segundo o Evangelho, incontestavelmente
foste. A partir daí, o que me parece difícil vai ao lugar.
A tua
própria pessoa, o teu comportamento, manifestam que Tu não és daqui e que não
Te posso julgar segundo as leis deste mundo. Tu sabes de onde vieste e para
onde vais (João 8,14). Os dois extremos da tua vida, a tua vinda e a tua
partida, os dois instantes em que o céu e a terra devem ter-se tocado, iluminam-se
a partir do centro, lá onde Te vejo ser e agir.
Dom do
Alto, Tu só podes descer. Tens o peso de qualquer grande dom. Tu «desceste do
céu» como diz o Evangelho
(João 6,33 e 38) e continuas a descer. Está tudo neste movimento: descer, ir ao
encontro dos que estão mais
abaixo e parecem inatingíveis.
Deste modo,
a palavra «dom» não explica apenas de onde vens. É também preciso compreender
para onde vais. Tu voltas para o Pai, de onde vieste, mas voltas para lá num mesmo
movimento de dom. Poderíamos chamar subida a este retorno, mas na realidade só
reencontras o Pai ao esgotar totalmente o dom. Perante o peso deste amor – amor
do Pai que Te oferece aos homens, o teu próprio amor que faz com que Te
ofereças – a morte já não tem qualquer poder.
Foi
atravessada a barreira intransponível.
Podemos
perguntar-Te agora onde vais, pois foi aberto um caminho.
Voltaste
para junto do Pai e contigo agora também nós passaremos.
Foste
muitas vezes discreto sobre Ti mesmo.
Para falar da origem e do fim da tua vida
utilizaste expressões misteriosas.
Era intencional. Era preciso que fôssemos a Ti pela fé.
Cabe-nos agora
adivinhar o sentido desta discrição.
HÉLDER GONÇALVES
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