domingo, 20 de janeiro de 2013

Onde está a vossa Fé?


Não sendo a fé primeiramente adesão a verdades nem submissão a uma afirmação que não pode ser verificada, é essencialmente confiança, entrega de si a um outro, à sua palavra ou ao que ele é capaz de fazer. Aquele que crê deixa de avaliar tudo em relação a si próprio.
Não olha para si. Abandona-se.
No entanto, o dom da fé em Cristo só pode crescer apoiando-se num conhecimento. À medida que avanço, torna-se-me indispensável compreender melhor o que, à partida, me atraiu para Ele e me levou a dar-Lhe a minha confiança. A palavra hebraica para conhecimento expressa mais uma comunhão entre pessoas do que uma aproximação intelectual. Ao querer conhecer a Cristo, procuro aprofundar o que posso saber sobre Ele,
como os Evangelhos falam d’Ele e como os outros escritos do Novo Testamento O apresentam vivo.

Numa das passagens mais pessoais que alguma vez escreveu (Filipenses 3,4-11), São Paulo passa sem dificuldade da fé em Cristo ao conhecimento de Cristo. Se a fé o faz abandonar tudo aquilo de que se podia vangloriar para se confiar apenas a Cristo, esta fé torna-se necessariamente conhecimento pessoal de Cristo, no concreto da vida, conhecimento do poder da sua ressurreição e comunhão com os seus sofrimentos.

Dado que Cristo não é uma figura do passado e que viver com Ele não tem nada de estático, a confiança será sempre uma das características da fé, pois seremos constantemente confrontados com situações imprevisíveis. A própria vida nunca nos deixa no mesmo lugar. Ainda por cima, o próprio Cristo chama-nos a segui-l’O para onde Ele nos precede.

Ninguém pode abastecer-se de confiança. É verdade que podemos conseguir uma certa serenidade ou tornar as nossas convicções mais sólidas. Podemos impregnar-nos da palavra «confiança» e redizer textos que dela falam. Mas a confiança que temos em alguém vive-se sempre no caminho. Este caminho conduz-nos a situações inéditas, torna-se por vezes quase impraticável, pode mesmo descer a uma escuridão onde parece faltar todo o apoio sensível. É então que só Ele conta. É ainda impossível olhar para nós próprios.

Resta-nos escutar o pouco que se ouve da sua voz, a pequena centelha que discernimos da sua luz. Por vezes, a angústia pode tornar-se tal que deixamos de ver ou ouvir seja o que for.
Como pôde Jesus repreender «a pouca fé» dos seus discípulos (Mateus 6,30; 8,26; 14,31; 16,8) em tais situações? Será possível medir a fé? Os discípulos deveriam ter tido mais (ou uma reserva maior de) confiança? Em que é que a sua fé foi insuficiente? Jesus teria querido que eles se mostrassem capazes de fazer face ou de resolver a situação por si próprios? É aliás estranho que o evangelista Mateus tenha colocado lado a lado a repreensão pela «pouca fé» e a promessa de uma «fé como um grão de mostarda» (17,20). Se a fé, em si, é quase nada, porquê criticar os que têm pouca fé?

Será que a fé dos discípulos devia ter crescido ao ponto de superar a situação e a dominar? Mas uma atitude dessas não seria coerente com o espírito do Evangelho, com a confiança simples de homens e mulheres pobres. Talvez a expressão «pouca fé» exprima acima de tudo uma confiança demasiado limitada, que tivesse ficado a meio caminho, como se houvesse domínios onde não pudéssemos depender de Jesus, uma confiança que tivesse limitado o poder de Jesus ao que é unicamente espiritual ou interior e não fosse capaz
de reconhecer a sua presença na Criação ou na História. Os discípulos não foram suficientemente longe.

Voltaram ao que lhes parecia possível, em vez de ousar avançar apenas com quase nada, só com Jesus. A sua confiança tinha vistas curtas.
Guardo na memória certas pessoas que mesmo tendo experimentado a dúvida se empenharam com uma grande audácia. Souberam dar prioridade à pouca luz contida na fé. Essa pequena luz tinha para elas infinitamente mais peso que as argumentações mais inteligentes que se lhes ofereciam. Conseguiram assim chegar longe e nunca parar. Uma fé plena pode ser ao mesmo tempo uma fé pequenina. Uma fé que se apercebe de tudo o que a pode perturbar, mas se recusa a deixar-se dividir, limitando-se a uma parte da vida. Repousa inteiramente naquele em Quem crê. Não se funda em si mesma. Só O tem a Ele. E a Ele, não O pode fixar, fechar, reduzi-Lo à sua própria medida. Ele vai sempre à frente, dando-nos a impressão de não ter fé suficiente.

Ao contar a história da tempestade acalmada à sua maneira, São Lucas substitui a repreensão de Jesus aos seus discípulos («porque temeis, homens de pouca fé?») por uma pergunta: «Onde está a vossa fé?» (Lucas 8,25). Lucas atenua a repreensão e desejaria uma resposta do leitor. Gostaria de me imaginar numa situação semelhante e ouvir eu próprio a pergunta de Jesus. Parece-me que não poderia deixar de responder: «Mas és Tu a nossa fé». É evidente que em nós há falta de fé. Ela nunca está à altura do dom que nos foi entregue
e não consegue fazer face a acontecimentos críticos. Mas quanto Tu estás presente, eu creio.

Tu carregas tudo, inclusive a minha falta de fé. A Tua presença é presença de fé.
A história do pai da criança epiléptica referida no início desta reflexão mostra ainda melhor até que ponto Jesus está próximo daquele que não pode crer. O pai tinha-se aproximado de Jesus dizendo: «Se podes alguma coisa, socorre-nos, tem compaixão de nós» (Marcos 9,22). Jesus devolve ao pai as palavras «se podes», acrescentando: «Tudo é possível a quem crê.» No fundo diz-lhe praticamente: «Cabe-te a ti ter confiança». No entanto, não ficou à espera, pôs-Se ao lado deste pai e quando ele não conseguia acreditar, carregou também isso aos seus ombros. Acreditou com o pai e assim o impossível aconteceu. Deste modo, não devemos pensar que uma fé enfraquecida está longe de Jesus. Ele próprio vem em auxílio dos que têm dificuldade em acreditar.

HÉLDER GONÇALVES


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