No fim do Evangelho segundo São Mateus, a aparição de Cristo
ressuscitado marca os discípulos presentes a tal ponto que estes
ajoelham-se diante d’Ele num gesto de adoração. O evangelista nota
que «alguns ainda duvidavam» (Mateus
28,17).
No clímax do Evangelho é assim claro que Deus não se impõe nem força ninguém. Cada pessoa mantém-se livre, inclusivamente aquele que hesita.
Encontrar lado a lado a adoração e a dúvida pode ajudar-nos a
compreender melhor tanto a adoração como a fé.
A adoração não é aquilo que muitas vezes imaginamos, uma prostração forçada como se nos encontrássemos diante de um poder de tal forma superior que não podemos fazer outra coisa senão ceder e curvar-nos.
Também não se confunde com um gesto ritual que pode não passar de um movimento exterior. Ainda que se exprima tipicamente por um movimento corporal (na Bíblia: prostrar-se), a adoração vem do interior, como tão bem nos mostrou a história do cego de nascença. Este homem, que finalmente pode ver, já não precisa de olhar Jesus na medida em que a sua cura o ilumina interiormente e prostra-se (João 9).
Tomé também já não precisa de meter o dedo nas chagas. Saber-se reconhecido na dúvida ultrapassa qualquer constatação material. De Tomé passa a brotar apenas adoração (João 20).
Noutras partes do Evangelho segundo São João Jesus fala de uma adoração «em espírito e verdade» (João 4,23-24).
A expressão «em espírito» quer dizer em primeiro lugar: segundo a
natureza espiritual de Deus – Deus é espírito –, logo sem estar ligado a nenhum
lugar em particular nem a nenhuma representação exterior. Mas a expressão não
pode deixar de querer igualmente dizer que esta adoração é animada a partir do
interior pelo Espírito, por esse Espírito que nos sincroniza interiormente com
Deus. E se «em verdade» indica certamente uma oposição a todo o conhecimento
ainda imperfeito de Deus, ainda assim não podemos excluir a ideia de que nesta
expressão a verdade seja também aquela da qual o ser humano
está intimamente convencido. Trata-se de uma adoração autêntica, sentida
interiormente como legítima e em nada forçada.
No entanto, a simples palavra «adoração» pode facilmente levar a crer que há nela algo de elevado, reservado aos que têm uma fé forte. Uma máxima de São João da Cruz pode ajudar-nos a compreender melhor o que se deve entender por adoração: «O Pai só disse uma palavra. Foi o seu Filho. E no silêncio eterno Ele não pára de a dizer. Cabe-nos então escutar também esta palavra no silêncio.»
O silêncio de Deus representa uma provação para aqueles que querem acreditar. É verdade que este silêncio prova que Deus não se impõe a ninguém, mas para muitos Deus é demasiado silencioso. Os que falaram em seu nome trouxeram ideias precisas e um conhecimento da sua vontade, mas não desvendaram a sua verdadeira natureza, nem abriram o seu coração. Para isso foi preciso esperar o seu Filho. Com Ele, Deus quebrou o silêncio. Com Ele, foi tão longe quanto possível para dizer Quem é, dizê-lo não por palavras, mas por uma vida humana como a nossa, uma vida que se dá. Não poderia ter ido mais longe. Nada poderia mostrar tão bem quem Ele é desde o princípio dos tempos e a que ponto ama.
É esta palavra única que ecoa agora sem parar. Deus não acrescenta mais nada. Disse-a uma e outra vez.
Neste sentido, podemos dizer que ela ressoa no silêncio, a ele não se sobrepondo quaisquer outras afirmações. Para a receber, a alma deve habituar-se a este silêncio, ultrapassar a procura de respostas rápidas ou de soluções fáceis. A palavra vem do coração de Deus, abre o seu coração e procura o nosso, apelando ao que está no fundo de nós. Ela passa de coração em coração.
O que entendo é, então, que só n’Ele há amor. Vou ouvir isto uma e outra vez. Por muito que eu me aproxime de Deus, nunca compreenderei inteiramente esta verdade. Devo acolhê-la renovadamente no silêncio, num silêncio que procura encontrar o próprio silêncio de Deus.
Compreender a vinda de Jesus tendo este silêncio como pano de fundo predispõe à adoração. Só o simples facto de o silêncio ter sido quebrado perturba-nos. Deus não permaneceu calado, quis dizer uma palavra não do Alto, mas através de uma existência como a nossa, como que por baixo. E o conteúdo dessa palavra perturba-nos mais ainda: afinal é este o valor que temos aos olhos de Deus, é este o segredo da criação!
Deus foi tão longe quanto isto! Mas, com que respeito estas coisas
nos foram ditas. Nada nos foi imposto.
As nossas conversas interiores, as nossas argumentações de que se alimenta a dúvida parecem imediatamente deslocadas. O que Deus diz através da vinda de Jesus – ainda que isto nos chegue apenas sob a forma do «murmúrio de uma brisa suave» (1 Reis 19,12) – tem infinitamente mais peso do que o que possa surgir no nosso íntimo. Somos reconhecidos mais profundamente do que pela nossa própria consciência.
Não podemos deixar de nos calar e de nos abandonar, de nos prostrar.
Da mesma forma que, para muitos, a consciência de ter apenas pouca
fé não os impede de agir com uma confiança grande e audaciosa – pois põem em
primeiro lugar esse pouco que os ilumina – o mesmo acontece com a adoração:
dá-se prioridade ao que nos cativou e foi suficiente para nos perturbar. Uma fé
consciente da sua fragilidade pode facilmente regredir, reduzir-se à
medida humana. Mas isso seria ir contra a natureza da fé. Na natureza da fé
está a atracção para aquilo que está para além, para um encontro, para a
adoração.
HÉLDER GONÇALVES
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